Ave César

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Nuno Figueiredo

25 de ago de 2020

· 13 min de leitura

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Ave César
a grande conversa
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Completamos 75 anos do lançamento da primeira bomba atômica em Hiroshima. Um dos maiores crimes de guerra, nunca punido, porque foi feito pelo vencedor da guerra.

A História tem essa lógica, de ser narrada pelo lado vencedor, pelo lado dominante. E é sobre essa ótica que entendemos o império Romano e seu reinado longevo. E o grande vencedor e sobrevivente aos romanos foi sem dúvida o Cristianismo, que passou de religião proibida e perseguida, a dominante e perseguidora.

Até hoje chamamos de Bárbaros os povos que teimavam em não se submeter e estavam fora dos domínios romanos. Quem é o Bárbaro e quem é o civilizado depende unicamente de quem está contando a história.

E é este período que Edward Gibbon cobre, desde a ascensão do Imperador Augusto, sobrinho de Júlio César, até a queda do Império no livro “Declínio e queda do Império Romano”. A principal leitura deste mês na Grande Conversa, que tratou agora dos romanos.

“A História do declínio e queda do Império Romano, a maior e quiçá a mais espantosa cena da História da humanidade.”

Em vários momentos não há muita diferença entre o bárbaro e o romano.

“Agrada-me ver os juízos dos homens adquirirem a tintura de suas preconcepções, e ver que eles não conseguem extrair, de princípios que reconhecem como justos, conclusões que sentem ser as mais exatas. Agrada-me surpreendê-los detestando no bárbaro o mesmo que admiram no grego, qualificando de ímpia a mesma história pagã que na boca do judeu é sagrada.”.

Na hora de conquistar e saquear uma cidade, a diferença é ainda menos sutil.

“Na queda e saques de grandes cidades...pequena, ai de nós! é a diferença entre o civilizado e o selvagem”.

O Exército Romano

Na queda do Império Romano, a decadência de seu poderoso exército é uma parte importante dessa história.

O nome “exército” deriva da palavra usada para designar exercício. Os exercícios eram o objeto mais relevante e contínuo de sua disciplina.

Os centuriões estavam autorizados a castigar com espancamento, os generais tinham o direito de punir com a morte; era uma máxima inflexível da disciplina romana que um bom soldado tinha muito mais a temer de seus oficiais do que do inimigo.

Não é de se estranhar que um soldado fosse mais fiel ao seu general que ao Imperador. Essa foi uma das causas da queda da república. O grande poder concentrado nas mãos dos líderes das poderosas legiões romanas.

Com o fim da república, com raras exceções, temos uma sucessão de imperadores que iam do ruim ao péssimo. E vem junto uma sucessão de revoltas, traições, assassinatos, de forma que era raro o Imperador que morria de morte natural.

Um dos medos era justamente de os líderes do exército ambicionarem o poder. Isso relaxou a disciplina e tornou o outrora austero exército numa tropa mais preguiçosa. Sobre isso Gibbon comenta que os soldados pegaram os vícios da vida civil:

“Observa Amiano que gostavam de camas fofas e casa de mármore, e que suas taças eram mais pesadas que suas espadas”.

Para se ter uma ideia da força do exército romano, o comentário abaixo é bem esclarecedor.

“O número de postos ou guarnições permanentes estabelecida nas fronteiras do Império chegava a 583, e que sob os sucessores de Constantino, a força completa da organização militar era calculada em 645 mil soldados”.

A Barbarização do Exército

A decadência do exército não se deve unicamente ao relaxamento. Os eternos conflitos internos também foram responsáveis por dizimar grande parte do contingente. Passou-se a exigir da província recrutamento de homens. E entrar para o exército não era algo tão desejável.

“Era tal o horror pela carreira de soldado que se apossara da mente dos degenerados romanos que muitos jovens da Itália e das províncias optavam por decepar os dedos da mão para evitar o recrutamento”.

O jeito foi recorrer aos bárbaros. No começo os recrutando, e finalmente contando com exércitos inteiros de bárbaros como parte da defesa. O império tinha quase dez mil quilômetros de fronteira para defender.

“O alistamento de bárbaros nos exércitos romanos se tornava dia a dia mais generalizado, mais necessário e mais fatal”.

Os romanos ensinaram e treinaram o inimigo. Não é de se estranhar que o primeiro invasor de Roma era um aliado do Império, o Alarico.

“Um chefe vitorioso, que unia o espírito temerário de um bárbaro com a arte e disciplina de um general romano.”

A divisão do Império

O Imperador Diocleciano tentou salvar o Império Romano a partir da sua divisão em quatro regiões, que seriam comandadas por quatro imperadores.

O Imperador Constantino foi um dos últimos grandes líderes do exército, unificou de novo o império. E fundou uma cidade em sua auto-homenagem, Constantinopla, que se tornaria a capital do Império Romano do Ocidente.

Durante o século 4, o Império manteve-se unificado, com sua sede em Constantinopla. O imperador Teodósio estabeleceu, em 395, a divisão definitiva. Ficou o Império Romano do Ocidente, com capital em Roma, e o Império Romano do Oriente, também chamado de Império Bizantino, com capital em Constantinopla.

O Gibbon opina que essa divisão é um dos motivos da decadência.

“Ainda mais fatal que a pressão dos bárbaros havia sido a divisão de outrora império uno em fragmentos oriental e ocidental”.

Mapa do Império Romano

Uma sucessão de imperadores

Há um link interessante com a história do rei Saul, que lemos na Bíblia Hebraica. Deus avisou que um rei não era uma boa ideia, que ia dar ruim, e ainda assim todos quiseram um soberano.

Depois de Augusto a república nunca mais voltou, por mais que os Imperadores fossem ruins, e alguns capricharam nisso, ainda assim era uma sucessão de imperadores.

Aí esculhambou de vez, dois imperadores e um monte de césares. E quanto maior o poder pior o resultado, pior a corrupção e os desmandos. Não dá para entender a vocação que alguns têm em serem plebeus e aceitarem como bom um rei, imperador ou tirano.

Alguns imperadores de Roma são famosos até hoje pelos seus muitos defeitos e nenhuma qualidade. É o caso de Nero, que incendiou Roma, e de Calígula, famoso pelas orgias que praticava.

E temos o Imperador Valentiniano:

No governo dos assuntos de seu palácio ou de seu império, leves ou até imaginárias ofensas - uma palavra imprudente, uma omissão casual, um atraso involuntário – eram castigadas com uma sentença de morte imediata. As palavras que mais prontamente saíam da boca do imperador do Ocidente eram: “Cortem-lhe a cabeça”, “Queimem-no vivo”, “Que seja espancado até morrer”.

Talvez ele tenha inspirado a personagem rainha de copas em Alice no país das maravilhas.

O abuso de autoridade

A situação do cidadão comum era cada vez pior. Tantos desmandos corroeu toda a estrutura do Império. A conta ia para os pagadores de impostos. Era necessário cada vez mais dinheiro para pagar a farra promovida por qualquer um que tivesse algum tipo de poder. O jeito foi endurecer as leis para quem se recusasse a pagar imposto.

Não pagar impostos era fatal:” varicar ou burlar a intenção dos legisladores eram severamente observadas e punidas como crime capital, que incluía a dupla culpabilidade de traição e sacrilégio.”

O tratamento dos devedores insolventes: teve um édito humanitário de Constantino que abolindo o uso de cavaletes e açoites, designa uma prisão espaçosa e arejada como local e seu confinamento

A perseguição ao Cristianismo

O cristianismo se espalha como se fosse fogo na palha por todo o Império Romano. A sua mensagem era muito sedutora. A mensagem era acessível principalmente para os mais humildes, e ainda para os escravos.

O Alex Castro explica bem no texto abaixo, porque os cristãos começaram a ser perseguidos:

“O mundo pagão, por definição, não perseguia religiões, não fazia sentido. A tolerância era a regra. Cada povo, cada cidade, tinha os seus deuses e isso era aceito, era parte da vida. A pessoa tinha o seu Deus e, quando chegava em uma nova cidade, era de praxe que iria prestar reverência aos deuses da cidade, mas que também iria continuar reverenciando os seus.

Os cristãos são perseguidos justamente por se recusar a prestar reverência aos deuses romanos, que eram a raiz e o centro da vida cívica.”

O Gibbon explica porque esse comportamento ocorria:

(Os Cristãos) Consideravam a mais trivial indicação de respeito para com o culto nacional uma homenagem direta ao demônio e um ato de rebelião contra a majestade de Deus.

Essa intolerância, segundo Gibbon, colocou a religião cristã em rota de colisão, e iniciou o que depois foi chamado de a “Grande Perseguição”.

O imperador Décio, que exilou ou executou os principais bispos cristãos e por dezesseis meses impediu a eleição de um novo bispo de Roma. Mas a maior perseguição se verificou nos últimos dias do imperador Diocleciano.

No entanto, segundo Gibbon, alguns nem precisavam ser perseguidos. Os cristãos primitivos se orgulhavam de não ceder.

“O gosto dos primeiros cristãos pelo martírio era tão grande que eles por vezes “supriam por sua própria confissão a falta de um acusador, perturbando rudemente a celebração pública de um culto pagão.

“pulavam prazerosamente dentro do fogo acesso para consumi-los” até os bispos se virem forçados a condenar tais práticas”.

Gibbon calcula em cerca de 2 mil o número total de cristãos executados nesse período.

O bispo Inácio de Antioquia

Segundo a famosa frase de Tertuliano, autor cristão, o sangue dos mártires era a semente da Igreja.

Olha o exemplo dado pelo bispo Inácio de Antioquia (fonte Wikipedia)

“Escrevo a todas as Igrejas e a todas inculco que de bom grado morrerei por Deus, a não ser que vós mo impeçais. Suplico-vos, não mostreis uma boa vontade exagerada comigo. Permiti-me ser pasto de feras selvagens, pois através delas ser-me-á permitido chegar a Deus. Sou o trigo de Deus e serei moído pelos dentes das feras selvagens, para que possa ser tido como o puro pão de Cristo [...] Rogai por mim a Cristo para que, por estes instrumentos, possa eu ser oferecido em sacrifício a Deus”

Ele foi atendido em suas preces. Condenado pelo imperador Trajano, foi devorado pelos leões no Coliseu, em Roma.

Os circunceliões

E falando do gosto de alguns de se martirizarem logo para ir mais cedo para o reino dos céus, o caso dos circunceliões é de fazer inveja ao pastor Jim Jones.

““Os circunceliões”, cujo brado de guerra era “Louvado seja Deus”.

Um de seus principais artigos de devoção parece ter sido o horror à vida.

Num dia anunciado, atiravam-se do alto de algum precipício. O desaparecimento dos circunceliões foi apressado por essa singular ânsia e prática da autodestruição.”

Coisa de maluco. Obviamente isso não tem a ver com mensagem de Cristo, e sim como alguns doidos conseguem distorcer tanto a religião.

A perseguição ao Paganismo

Essa situação virou com o imperador Constantino. Ele se converteu ao Cristianismo e aí virou a chave. A perseguição agora se voltou contra os cultos pagãos.

“Constantino.... ordenou a demolição de diversos tempos da Fenícia onde todas as formas de prostituição eram devotamente praticadas à luz do dia e em honra de Vênus.

O imperador assimilou as máximas da perseguição; e as seitas que dissentiam da Igreja católica eram importunadas e perseguidas pelo cristianismo triunfante.

Algumas das regulamentações penais foram copiadas dos éditos de Diocleciano, e tal método de conversão mereceu o aplauso dos mesmos bispos que tinham sentido a mão da opressão e reivindicado os direitos de humanidade.”

Investigação do crime de magia

Os filósofos também foram perseguidos. Já nessa época a ciência era confundida com magia. E a magia era intolerável.

“A perseguição contra os filósofos e suas bibliotecas foi empreendida com tanta fúria que desde essa época (374 d.C.) os nomes de filósofos gentios quase despareceram.”, diz o deão Milman, um dos anotadores de Gibbon. “Além de vastas pilhas de manuscritos terem sido publicamente destruídas por todo o Oriente, os homens de saber queimavam suas bibliotecas, temendo que algum volume fatal os pudesse expor à malignidade dos informantes e à penalidade da lei”.

Nascia aqui um efeito colateral danoso. Esta intolerância iria gerar alguns anos depois a Inquisição e as Cruzadas.

Concluindo

O Gibbon ignora o Judaísmo. Ainda assim os poucos comentários a respeito não são favoráveis. Para ele, é uma religião exclusiva para o povo escolhido. Segundo Gibbon ela não incomodava ninguém porque ficava na dela. Era, portanto, uma religião mais tolerante que convivia bem com o politeísmo romano. Já o Cristianismo vira um poder paralelo que desafia até o poder do Imperador.

Fora que os cristãos não temem a morte, e alguns até a procuram. Muito difícil controlar gente assim.

Até quando os Bárbaros invadem Atenas, o Gibbon liga o fato deles terem se convertido para o Cristianismo como um dos fatores que possibilitou a invasão. Eles ignoravam a deusa Atenas e Aquiles, e aprenderam a não temer outros deuses.

Um dos imperadores favoritos do Gibbon, Juliano, é um que tenta voltar às raízes e promover o retorno ao culto politeísta. E isso dura pouco.

O Gibbon é um historiador. Ele não inventa nada. Todo os seus relatos tem como base relatos de outros historiadores que viveram essa época. Ele faz uma cuidadosa curadoria, numa obra deliciosa que levou vinte anos para ser escrita.

Ele relata como terminou um império magnífico.

“Após 1163 anos de sua fundação, Roma, a cidade imperial, que subjugara e civilizara parte tão considerável da humanidade, viu-se entregue à fúria licenciosa das tribos da Germânia e da Citia.”

O Gibbon se converteu secretamente ao catolicismo numa Inglaterra Anglicana, no século XVIII, numa época que ser católico era algo proibido. Posteriormente ele se torna protestante. Não obstante, nem sempre ele emite uma opinião favorável do Cristianismo. E é possível separar os fatos narrados da opinião dele.

Para Gibbon, o Cristianismo é o grande responsável pela corrosão, perda de identidade e queda do Império.

Lendo o livro não se estranha que o império tenha caído, e sim, como conseguiu durar tanto tempo. O próprio Gibbon faz esta reflexão.

Não sei avaliar de todos os fatores apresentados qual foi o mais importante. Não precisa necessariamente ser um único fator. O fato é que não vejo a queda do Império Romano como algo ruim. Era um império que floresceu à custa de seu poderio militar, conquistando e escravizando outros povos.

Só para ficar num único exemplo, os romanos tinham como diversão ir ao Coliseu verem escravos, transformados em gladiadores, lutarem até a morte. Não contente com isso, inovaram levando Leões, para devorar pessoas, para o delírio das massas.

Consta que foi Pompeu ter sido o primeiro a apresentar no circo uma luta de dezoito elefantes, tendo como oponentes homens indefesos, à imitação de um combate, conforme relata Sêneca. As pessoas eram esmagadas como parte desse espetáculo.

A chegada do Cristianismo encerrou essas práticas. Para mim não é algo a se lamentar de todo.

 

A Grande Conversa
A grande conversa está apenas começando. Nela navegaremos pelos clássicos, vendo como um autor conversa com o seguinte, e vai montando ao longo dos anos, e das histórias, uma grande conversa.
Se você tiver interesse, eu super recomendo:
www.alexcastro.com.br/category/grande-conversa.

 

Nuno Figueiredo

Engenheiro Eletrônico formado pela Mauá, MBA em Gestão Empresarial pela FGV, é um dos fundadores da Signa, onde atua desde 95. Entre outros defeitos, jogou rúgbi na faculdade, pratica boxe e torce pelo Palmeiras.

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