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“Da mesma maneira que toda pessoa é, ao mesmo tempo, melhor do que a pior coisa que ela fez, e também pior do que a melhor coisa que ela fez, um texto, um livro, uma obra de arte, também.”
Alex Castro
Em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, de Woody Allen, há uma cena onde temos um chato na fila para o cinema, ele está explicando para a sua acompanhante suas opiniões a respeito de filmes e livros.
Ele entra numa discussão com o Woody Allen sobre a obra do Marshall McLuhan. Eis que o Allen puxa do nada o próprio auto Marshall, que passa uma descompostura no chato, dizendo que ele não entendeu nada. A cena corta para o Woody Allen olhando para a câmera e perguntando se não seria legal se fosse assim na vida real. Você pode ver esta cena muito engraçada aqui.
E o que dizer deste texto abaixo?
“Caso mais comprovável é o de Oswaldo Montenegro, que foi prestar vestibular em Brasília - Andréa não soube me dizer se por necessidade, vocação ou farra - e lhe caiu nas mãos, na prova de língua portuguesa, um texto de sua autoria para interpretação. Respondendo às perguntas sobre a letra de uma de suas próprias músicas, o máximo que Oswaldo Montenegro conseguiu atingir foi um 8 (oito). Fosse maior a concorrência e ele teria sido reprovado. Tamanha foi a agonia que, no ano seguinte, ele ganhou o festival da MPB com uma música que tinha justamente esse nome: agonia. Mas isto é outra história.”
Fonte: patio.com.br/labirinto
O fato é que o criador não tem controle sobre a sua criação. Uma vez pronta a obra, ela está lançada para ser vista e interpretada com os olhos do mundo. As diferentes visões, e distorções, fazem parte do jogo.
Se isso é verdade sobre algo criado agora, o que dizer a respeito do antigo testamento, que a propósito, é uma coleção de livros.
Estou participando do curso de literatura “A grande Conversa” do Alex Castro, vou dividir aqui o que achei interessante a respeito da literatura clássica, mais especificamente a respeito do AT (Antigo Testamento) que foi o livro explorado na primeira aula.
Os clássicos já são todos de domínio público. Você acha esses livros de graça ou em preços módicos, mas essas são as traduções antigas ou ruins. Uma tradução muito antiga estará num português mais arcaico e torna tudo mais difícil.
Prefira as versões mais modernas em linguagem mais acessível. No caso da Bíblia, li a do Peregrino, que é uma Bíblia de estudo, portanto, com notas do tradutor que são fundamentais para uma compreensão do texto e da época. Aí vem o benefício de ter um tutor, o Alex já recomenda o que comprar, essa curadoria é fundamental.
O primeiro livro da Bíblia, o Gênesis, foi escrito há três mil anos atrás, 500 anos antes de termos o Judaísmo e mil anos antes do Cristianismo.
Não dá para ler esses livros com os olhos de hoje. São costumes e práticas muito diferentes, que não raro, nos levam a uma leitura incorreta e equivocada.
O objetivo do curso é literário. A proposta é ler a Bíblia como literatura, não como livro sagrado. A prova disso é que o Alex é ateu. Ele comenta que você não precisa acreditar em Frodo para ler o Senhor dos Anéis.
Você pode ler a Bíblia simplesmente porque é um livro muito interessante. Confesso que falhei nessa parte de ler como se fosse literatura, mas o ponto aqui é que a riqueza existente no livro faz ele valer muito a pena, mesmo para quem não crê.
Tem de tudo lá: incestos, traições, adultérios, genocídios, intrigas, guerras e inúmeras histórias interessantes. Tudo depende da forma como você deseja ler e interpretar. A Bíblia já foi usada para justificar coisas como a escravidão. O livro não é responsável pela forma como você o interpreta.
O Alex ensina que ler a Bíblia de forma literal é algo recente, surgiu há cerca de 200 anos. Até então não havia esse viés. Eu gosto bastante da proposta de Santo Agostinho que propõe uma forma mais generosa de ler a Bíblia. No texto do Alex Castro:
“É preciso pensar e ponderar, analisar e trabalhar o texto até chegarmos à interpretação que seja a mais caridosa e a mais generosa possível: independente da intenção do autor original, se um trecho da Bíblia parece não estar ensinando o amor, a caridade, a generosidade, então esse trecho deve ser interpretado figurativamente.”
Recomendo muito a leitura do significado literal da Bíblia, um post imperdível do Alex Castro, que faz parte dessa primeira aula, cujo conteúdo pode ser acessado publicamente.
Aliás, todos os textos deste curso e do Alex Castro podem ser acessados, são públicos, uma generosidade do escritor com quem não pode pagar para consumir esse material.
Sem esse olhar generoso na leitura, você vai se pegar achando que todo mundo lá é muito questionável. Desde o Noé, que escraviza seu próprio filho, ao rei Davi que comete adultério, e para resolver o problema de uma gravidez indesejada, trama para matar o seu general, que era o marido traído.
Tem muitos trechos que são verdadeiras obras primas. O livro de Jó é um deles, ele explica porque coisas ruins também acontecem com pessoas boas.
No nosso grupo de WhatsApp alguém postou este verso (lamento não ter o nome de quem, é muito fácil de perder num grupo de 200 pessoas):
A criança pergunta:
"Por que Deus não mata o Diabo?"
E o poeta responde:
"Se Deus matasse o Diabo
Matava o homem também.
O Diabo é somente o homem
Quando se afasta do Bem.
Outro comentário legal:
Tem um conceito judaico que tem a ver com o Diabo de Jó: o yetzer hara. Ele não é o Lúcifer, é a má inclinação que todo mundo tem dentro de si, e cada um escolhe se alimenta o seu yetzer hara ou não. O diabo de Jó é tipo o yetzer hara de Deus.
E tem os poemas baseados no livro. O poema sobre a mulher de Lot, da polonesa Wislawa Szymborska divaga sobre os motivos que levaram a mulher de Lot a olhar pra trás ao sair de Sodoma. Contrariando ordens do anjo, ela foi transformada em sal.
Sobre a mulher de Lot, as Notas do Tradutor nos dão uma interpretação a respeito:
“Olhou para trás com nostalgia ou curiosidade: sua figura petrificada passou a nossa cultura como símbolo de nostalgia covarde do passado, uma nostalgia que paralisa.”
Muito forte e totalmente aplicável aos nossos dias. Ficar preso no passado e não aceitar que o mundo mudou, e que temos que seguir em frente. A nostalgia que paralisa.
E temos o Jacó. Ele trai seu irmão, Esaú, roubando-lhe a benção de seu pai. Em seguida foge para escapar da ira de Esaú e se refugia na casa de seu tio Labão. Apaixonado pela filha de Labão, ele concorda em servir 7 anos para desposar Raquel. Ele é enganado por Labão que lhe cede a filha mais velha Lia. Jacó concorda em servir mais 7 anos para ter a sua tão desejada amada. Esta parte da Bíblia gerou um dos melhores versos de Camões.
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assi negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida;
Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: – Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!
Uma coisa que eu acho simpática são os nomes que encontramos na Bíblia, alguns impronunciáveis, mas muitos bem diferentes e interessantes.
E temos o Faltiel, nunca antes mencionado, nunca depois mencionado, é um personagem que certamente você não conhece e não se lembra, mesmo que já tenha lido a Bíblia várias vezes.
Ele não passa de um figurante. Não tem um único diálogo, ainda assim o Alex enxergou a participação dele de uma forma, quase engraçada, patética e até trágica.
Não vou fazer spoiler, vá beber direto da fonte: alexcastro.com.br/faltiel/
A grande conversa está apenas começando. Nela navegaremos pelos clássicos, vendo como um autor conversa com o seguinte, e vai montando ao longo dos anos, e das histórias, uma grande conversa.
Se você tiver interesse, eu super recomendo:
www.alexcastro.com.br/category/grande-conversa.
Eu gosto muito de ler. Confesso que nestes tempos de pandemia nunca tive tanto tempo disponível e mal aproveitado (o tempo livre). Não conseguia seguir com nenhuma das minhas leituras, e eis que fui resgatado por este curso. Não só voltei para a leitura, como estou tendo um dos meus momentos mais produtivos, atrás dessa grande conversa.
E com o ótimo efeito colateral de me desligar completamente do mundo atual por algumas horas. Este curso até aqui tem sido a melhor novidade deste ano tão estranho.
Nuno Figueiredo
Engenheiro Eletrônico formado pela Mauá, MBA em Gestão Empresarial pela FGV, é um dos fundadores da Signa, onde atua desde 95. Entre outros defeitos, jogou rúgbi na faculdade, pratica boxe e torce pelo Palmeiras.
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