Nem sempre o picareta tem cara de mau

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Nuno Figueiredo

14 de mai de 2019

· 7 min de leitura

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Nem todo mundo é bem-intencionado. É difícil pensar assim. É ruim esperar o pior das pessoas. É péssimo ver o mundo com uma lente negativa, mas os fatos provam que nem todas as pessoas são idôneas.

Eu não estou falando daquele meliante que pode te surpreender na rua, ou de um ladrão que aparece do nada com um 38 na mão. Estou falando de algum colega de trabalho, que você cumprimenta todos os dias, que parece ser uma pessoa decente, e que num belo dia é demitido por roubo. Todas as empresas estão sujeitas a isso.

Olha o trecho abaixo de uma reportagem da Exame, sobre a Kraft Heinz.

A Kraft Heinz vai refazer relatórios financeiros de um período de dois anos para corrigir os erros que resultaram de lapsos de práticas de aquisição por alguns de seus funcionários.

O termo acima é uma forma delicada de se florear o problema. O Valor foi mais claro, porém também dourou um pouco a pílula.

A crise na Kraft Heinz ganhou novo fôlego ontem. A fabricante de produtos alimentícios reconheceu um "desvio de conduta" por parte de vários funcionários da área de compras. Por isso, a empresa terá que reapresentar os balanços de 2016, 2017 e dos três primeiros trimestres de 2018.

Pois é, você pode chamar de “lapsos de práticas de aquisição”, você pode chamar de “desvio de conduta”, no fim é roubo mesmo! E estamos falando de uma empresa enorme, com governança corporativa, gestão de riscos, departamento de auditoria, entre outros controles. Ela passa por auditoria interna e externa, e ainda assim está sujeita a isso. Imagino o resto.

Um problema simples é que, para se defender com eficácia de criminosos, você precisa pensar como eles. É mais fácil para alguém sem caráter desconfiar de algo porque ele consegue facilmente se colocar no lugar do outro e pensar algo como: se eu quisesse enganar esse sujeito ou fraudar esse processo, como eu faria?

Esse é um dos maiores problemas de segurança de qualquer empresa. Pessoas de bem não conseguem imaginar alguns cenários e costumam ser vítimas deles.

Outro ponto complicado é esperar que exista alguém com determinado desvio de caráter, que seja um bandido em potencial, à espera de uma oportunidade.

No filme “Prenda-me se for capaz”, o mestre da fraude, Frank Abagnale Jr. (Leonardo Di Caprio), é capturado por um agente do FBI (Tom Hanks), e vira consultor para identificar e ajudar a prender outros falsários. O filme é baseado em fatos. É isso, ninguém entende tão bem a mente criminosa como os seus pares.

Filme “Prenda-me se for capaz” – Steven Spielberg

Filme “Prenda-me se for capaz” – Steven Spielberg

No início de minha carreira, eu ainda era técnico em eletrônica e trabalhava numa empresa que prestava serviços de manutenção de computadores. Vi um de meus colegas sair algemado de seu local de trabalho. Ele roubava a memória de alguns PCs e vendia por fora. Na época um cartão de memória custava uma fortuna.

Além da história do roubo em si, a surpresa que aquele sujeito da baia do lado, que almoçava junto de vez em quando, era um ladrão. O cara era um técnico de mão cheia, um dos melhores da empresa. Casado, com filhos, jovem e fazendo faculdade, parecia um profissional promissor, até que resolveu que os seus problemas financeiros poderiam ser resolvidos de uma forma mais fácil, mais rápida. Foi meu primeiro contato com o roubo dentro de uma empresa. Infelizmente não foi o único.

Com o tempo e com as porradas, as empresas e seus gestores desenvolvem defesas contra essas práticas. Passamos a ser mais desconfiados. Cada experiência ruim nos torna mais reticentes, e mais cuidadosos. Já conheci empresários que me pareceram ser paranoicos com alguns temas. Com o tempo aprendi a valorizar esse tipo de paranoia.

Trate a todos como se fossem pessoas maravilhosas, e tenha controles adequados para o caso delas não serem.

A coisa não pode ser pessoal. Não dá para confiar em feeling nesse tema. Os processos e procedimentos tem que servir para todos, sem exceção. É isso, ou entra o preconceito, o juízo de valor, e a abertura para problemas.

Em 2016 a CNova, empresa do GPA e Casino, descobriu irregularidades que ocorriam nas trocas dos produtos. As mercadorias trocadas não voltavam ao estoque e eram desviadas por alguns funcionários. As perdas, descobertas em 2016, ocorriam desde 2011, e totalizaram prejuízo estimado em 177 milhões de reais.

Aqui uma fragilidade fomentou o aparecimento de uma quadrilha. O pior cenário possível para qualquer empresa.

Este assunto entra em pauta com mais frequência do que eu gostaria no nosso dia a dia. O fluxo de dinheiro é muito grande em operações de transporte. São diversos pagamentos que ocorrem diariamente, para motoristas e fornecedores. Entre desvios em acertos de contas, até o extravio de combustível, há uma infinidade de locais onde pessoas mal-intencionadas podem atuar e fazer desvios.

Nós gastamos muito tempo e energia planejando controles e travas que impeçam ou dificultem tais ocorrências, mas a criatividade e originalidade de alguns meliantes é surpreendente.

Lembro de um caso que ocorreu em um de nossos clientes há mais de dez anos. Uma quadrilha dentro da empresa forjava a emissão de cartas frete falsas, que geravam pagamentos a viagens inexistentes. Alguém no operacional emitia toda a documentação e alguém no financeiro pagava. Depois, a baixa do pagamento era estornada no sistema, seguida do estorno do movimento no operacional. Estou simplificando, mas havia a necessidade de 4 senhas em 2 sistemas diferentes, para que isso fosse feito.

E sabe como eles foram descobertos? Na implantação do sistema, um de nossos colaboradores se cadastrou como motorista para fazer o teste de emissão de carta frete. Esse cadastro foi inativado posteriormente ao teste. Eles reativaram esse cadastro e usaram o mesmo para emitir mais de 60 mil reais em cartas fretes falsos.

Eu tomei ciência do caso quando esse funcionário, que já não estava mais na Signa, nos procurou porque ele tinha caído na malha fina da receita federal. A receita cobrava o pagamento de impostos de mais de 60 mil reais de receitas que ele obteve fazendo carretos. Isso porque o pagamento feito contra o CPF dele gerou informe de rendimentos.

Quando eu levei o caso à direção da empresa, a polícia foi acionada e uma investigação descobriu a operação. Não sei dizer se aquele caso era único.

Depois que a coisa ocorre todo mundo enxerga o óbvio. No caso houve o estorno do movimento de pagamento e posteriormente o cheque estornado no sistema foi compensado. A saída do dinheiro ficou sem nenhuma contrapartida e isso é uma fragilidade que foi posteriormente analisada a fundo e tomaram lá alguma providência para evitar novas ocorrências.

Algumas empresas alegam que não tem tempo ou recursos para fazer determinados registros que permitam um maior controle. É o caso de se contar com a sorte. Torcer para que todas as pessoas envolvidas sejam honestas. Infelizmente nem todas são, e basta um que não seja para a coisa começar.

O fato é que é frequente lermos notícias a respeito, ou tomarmos ciência de alguém que foi demitido numa empresa que conhecemos por desvios de conduta. Acho que todo mundo tem alguma história para contar a respeito. Nem sempre um picareta se parece como tal. Nem sempre um picareta tem cara de mau.

 

Nuno Figueiredo

Engenheiro Eletrônico formado pela Mauá, MBA em Gestão Empresarial pela FGV, é um dos fundadores da Signa, onde atua desde 95. Entre outros defeitos, jogou rúgbi na faculdade, pratica boxe e torce pelo Palmeiras.

 

Foto: Freepik

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Ultimos comentários

Rafael Augusto

Muito bom...

John Marcus

Realmente é uma bela reflexão Nuno Figueiredo. Infelizmente vivemos em uma país que tem como uma de suas fortes imagens o cenário de sua abordagem. Nossos governantes, pessoas responsáveis por conduzir a nação afim de ser um lugar bom para se fazer parte, e principalmente deixar melhor para a próxima geração; estão sendo presos, e aqueles que ainda não foram ou nem se quer estão sendo investigados, penso comigo que estão morrendo de medo de serem descobertos. Líderes culturais, acadêmicos, empresários e até religiosos estão se corrompendo. O que é muito preocupante, porque toda grande nação(empresa, família, projeto, etc) se torna grande pela grandeza do seu líder(presidente, empresário, pai, projetista, etc). Como então mudar essa CULTURA?? A reflexão para essa pergunta me leva a pensar muito no que realmente importa, MINHAS ATITUDES. Tenho aprendido nos últimos 4 anos, que todo ser humano "consciente" tem quer ser fundamentos em princípios inegociáveis. Princípios esses que será um farol em um ambiente de escurido! Que que a forma mais efetiva de influenciar é pelo EXEMPLO. Obrigado Nuno, por trazer de maneira objetiva e contextualizada esse tema. Com a consciência ajustada de cada um, podemos transformar essa triste "CULTURA".