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15 de abril de 2013 - Por Adriano Silva
Sócio diretor da DamnworksBrand Content e Social Media, Fundador da Spicy Media, Publisher que trouxe o Gizmodo, o Jalopnike o Kotaku ao Brasil, Chefe de Redação do Fantástico, TV Globo, Diretor do Núcleo Jovem, Editora Abril, Diretor de redação da Superinteressante, Editor-sênior da Exame, Diretor de marketing do Grupo Exame e um grande batedor de estacas.
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Imundo, exausto e absolutamente feliz. Agora é a sua vez!
Sábado, 13 de abril. Pegamos a van às 6h30 na região da Paulista. Eu havia saído da minha cama quentinha, em meu apartamento confortável, uma hora antes. Com frio e chuva. Estávamos indo ajudar a construir uma casa para uma família que vivia em condições miseráveis. O convite havia partido do meu concunhado, Nuno, dono da Signa, empresa que faz sistemas para a gestão de transportes e de logística. Eu estava doando um bem precioso - um dia do meu fim de semana, tempo que dedico à família de modo religioso. Nuno estava doando mais - além do seu tempo, 6 mil reais. Com esse dinheiro, a Signa estava patrocinando a construção de duas casas. A que construiríamos com as nossas próprias mãos. E uma segunda, que seria levantada pelos voluntários da ONG Teto, a responsável pelo projeto.
Chegamos, depois de uma hora rodando pela São Paulo ainda vazia, a um lugar onde a metrópole parecia acabar. Radial Leste, Aricanduva, Sapopemba. E, finalmente, o Jardim São Francisco. Depois do último prédio do projeto Cingapura, depois do último boteco com mesa de bilhar e música alta, depois que o asfalto acaba. Nosso destino era um valão enlameado, cujos barracos faziam fronteira com o pasto, uma sinestesia quase pitoresca entre o fim do perímetro urbano e o começo do campo. (Claro que depois daquela coxilha verdejante haveria outros barracos e outros valões cheios de gente e lama. Sempre há.) Cruzamos por uma servidão paupérrima e descemos uma longa ribanceira até chegarmos à viela onde moravam Emerson e Priscila, o casal cuja casa iríamos erigir, lá embaixo, no meio do mato e do barro. Um viaduto passava ali por cima - o Rodoanel, me disseram. Lixo por toda parte - e um porco gordo fuçando sobre uma montanha de entulho. (Se os lixeiros também não passassem pelo Morumbi, penso que produziríamos montes espúrios iguaizinhos àqueles. Mais: talvez um pouco daquela imundície tivesse vindo de lugares como o Morumbi.) A "comunidade" era considerada pequena, bem familiar e, portanto, segura - ou seja: livre de bandidos perigosos demais. Ainda assim, havia a informação de que não deveríamos circular por ali depois das 19h.
Nos fundos de um terreno no fim do mundo, os destroços de um barraco retirado para que pudéssemos erguer ali uma casa de verdade.
O pessoal da Teto me surpreendeu desde o primeiro instante. Todos muito jovens, universitários. Absolutamente organizados, bem treinados, eficientes, seguindo protocolos, gente boa de cabeça e de coração. Naquele fim de semana, ali no Jardim São Francisco, 150 deles haviam acampado numa escola da região para construir 13 casas. Em toda São Paulo, 800 jovens como aqueles, de pele bem tratada, olhos radiantes e cobertos de lama, estavam fazendo o mesmo, em várias favelas, com o objetivo de erguer mais de 60 casas. A ONG Teto surgiu no Chile em 1997 e hoje atua em vários países da América do Sul e do Caribe. Seu objetivo é construir “casas de emergência”, feitas de madeira, pré montadas, (a que fizemos tinha 18 m2), erguidas sobre pilotis, para quem vive debaixo de tapumes. A Teto, segundo me disseram, constrói umas 600 casas por ano em São Paulo. E dá uma mínimo de decência a quem vive em condições subumanas.
Emerson e Priscila tem três filhos pequenos. Que estavam na casa da avó. Ele é um ajudante de obras, sem registro em carteira, que vive de pequenas empreitadas. Passou os últimos dois meses, segundo ele, com um adiantamento de 300 reais de um "patrão" com quem costuma trabalhar. Fuma cigarros paraguaios da marca Eight. E não nos brindou com o suor da sua testa ao longo do dia de trabalho. Ele assumiu um pouco uma postura de que estava ali para receber aquela casa e não para ajudar a construí-la (nós, brasileiros, não somos bons de mutirão e de solidariedade nem na hora em que isso nos favorece). Mas Emerson nos brindou sonorizando os períodos do dia em que passou conosco irradiando músicas do seu celular - Racionais é a sua banda predileta, embora ele também goste de funk e de reggae. Em algum momento ele também citou William, do Black Eyed Peas. Havia dois cachorros no quintal - um deles, uma cruza de pitbull, que se chamava Sagat, em homenagem ao personagem do videogame Street Fighter. A pobreza do século 21 é mais bem informada do que a pobreza com a qual eu me relacionei há 30 anos. Emerson é são paulino e tem os pés largos de quem quase não usou calçado fechado durante a vida. Seu chinelo de dedos batido se amolda ao seu pé pré industrial como um simbionte.
A casa que com a ajuda da ONG Teto nós construímos para a família de Emerson e Priscila.
Priscila é tão simpática quanto Emerson. Ela cozinhou para nós na casa de uma vizinha, com alimentos cedidos pela Teto. (Ela e Emerson derrubaram o barraco em que viviam para que pudéssemos erguer a casa naquele lugar - um fundo de quintal.) Parece parte importante do projeto da Teto que a família se envolva com o trabalho - e não apenas receba a casa pronta. Priscila se engajou um pouco mais do que Emerson - que depois de finalmente cavucar um buraco de piloti conosco e carregar alguns baldes de brita, simplesmente sumiu pelo resto da tarde. Sequer apareceu para se despedir de nós no fim do dia. Comi arroz com feijão (muito gostoso) com uma colher de sopa, num prato de vidro, de pé contra a parede caiada. E, depois, provei o macarrão reluzindo com molho de tomate. Havia também um ensopadinho de batata inglesa com alguns nacos de carne. Percebi que havia uma escala social, mesmo ali, na Rua da Mina, número 28-B, lugar onde o Correio não entrega. Mesmo no olho da miséria mais crua, há gradações. A casa da vizinha era de alvenaria. Tinha cozinha, quarto e banheiro: ao lado do vaso sanitário, que pedi licença para utilizar, um balde d'água - não havia descarga. Havia alguns carros à frente de algumas casas. Em outras, apenas carcaças abandonadas. Havia outras casas da Teto na rua. Havia os barracos. Havia quem morasse à frente dos terrenos e quem morasse nos fundos. Um lugar de desempregados, de indigentes, de gente vivendo de bicos, de trabalhadores de baixa renda.
Nuno, o empresário que doou duas casas da Teto no Jardim São Francisco, e eu, aprendendo que fazer a coisa certa é muito divertido.
Saí de lá fisicamente acabado. Ensopado pela chuva que não nos deu trégua. Embarrado como jamais fiquei na vida. Com calos nas mãos e com dor em todos os músculos do corpo - especialmente nas mãos, pulsos, cotovelos; nos tríceps, nas pernas e na lombar. Mas com o espírito absolutamente enlevado. Louco de vontade de que aquela não fosse a minha última ou única vez com a Teto - mas que fosse apenas a primeira de muitas outras experiências. Com a sensação de que fiz a coisa certa, de que consegui ir muito além da minha própria estatura, do meu próprio umbigo, dos problemas que às vezes eu deixo crescer para muito além da realidade que eles deviam representar.
Se você estiver interessado, saiba que sua empresa pode construir duas casas para quem mora debaixo de escombros por apenas 6 000 reais. Basta assinar esse modesto cheque e conseguir uma dúzia de voluntários - menos do que é necessário para o quórum de sua pelada semanal. Se você não é empresário, saiba que é possível colaborar como pessoa física. Como simples voluntário, como eu, nessa primeira jornada. Ou então doando 3 mil reais. Uma bagatela para dar a sua família a chance de doar uma casa e mudar a vida de uma outra família. Ou convide seus amigos - talvez até mesmo os caras do futebol, que podem se encantar pela ideia de se cotizar e de ir brincar de fazer o bem um dia desses. O resto é com a Teto. Que vai lhe orientar, vai fazer tudo funcionar e vai fazer o melhor uso que eu consigo imaginar para esse dinheiro.
Esse foi o meu sábado, 13 de abril. Um dia escuro que se tornou luminoso. Um dia comum que se tornou extraordinário. Um dia que eu jamais vou esquecer.
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