A morte anunciada e o Ford Pinto

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Nuno Figueiredo

25 de fev de 2019

· 4 min de leitura

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O ano de 2019 começou pesado, com várias tragédias. Começou com o rompimento da barragem de Brumadinho, seguido por enchentes no Rio, e depois pela morte dos atletas no Flamengo. Parece que a bruxa está solta.

Até onde isso pode ser chamado de tragédia é algo a discutir. Deveria ser chamado de morte anunciada. Por falta de ação, ou de avaliação de riscos, muitas pessoas são expostas a uma situação de tragédia.

Achei muito interessante a opinião do Silvio Zen, da Glic Fàs, cujo texto reproduzo abaixo:

“O comportamento do Conselho e da Diretoria Executiva da Vale em relação ao acidente de Brumadinho me faz lembrar de uma famosa decisão do Conselho de Administração e Diretoria Executiva da Ford Motors na década de 70, nos EUA. A empresa lançou o carro Ford Pinto, que incendiava facilmente em colisões. Identificado como erro de projeto, a empresa fez as contas e preferiu “pagar pra ver”. Por quê? A empresa fez um estudo e estimou que o custo de reparos das unidades do modelo totalizaria US$ 137 milhões. Já os gastos com indenizações e acordos decorrentes de abalroamentos envolvendo o Ford Pinto chegariam a menos de US$ 50 milhões. Só fez recall do carro depois de ser condenada, em um único caso, a pagar US$ 128 milhões de indenização.”.

Eu desconhecia essa história do Ford Pinto e fui pesquisar. Neste link você pode assistir a uma demonstração de como esse carro explodia facilmente. Até a poderosa agência do governo NHTSA, que é responsável pela segurança automotiva, intervir, estima-se que 500 pessoas morreram por causa desse defeito. Esse caso não é único. Você pode ler nessa matéria “Os 10 maiores escândalos da indústria automobilística” que o Ford Pinto não foi um caso isolado.

1978 - Ford Pinto

Isso resume bem a situação, não é um acidente, é um escândalo.

E o que dizer das enchentes? Todo ano chove muito no verão. Áreas com risco de enchente e desmoronamento são notícia anual de acidentes. Isso é que nem o carnaval, ocorre todos os anos na mesma época. O custo para resolver parece não valer a pena para as autoridades que sempre alegam, ano após ano, que o volume de chuva foi inesperado.

O incêndio no Flamengo, um dos clubes mais ricos do país, era algo totalmente evitável. Coisas simples como haver mais de uma porta de saída no container dormitório já teriam evitado o desperdício de vidas. Não é razoável dizer que a diretoria do Flamengo não ligava para a saúde de suas jovens promessas, mas o fato é que por ingerência, imprudência ou por simples incompetência, de forma consciente alojaram garotos em condições precárias e sem avaliar os impactos de tais decisões. Eu presto solidariedade às famílias, mas eu quero mais que o Flamengo arque com as consequências de sua falta de responsabilidade.

Até o acidente que matou o Ricardo Boechat já parece entrar na lista das tragédias anunciadas. A empresa não poderia prestar serviços de transporte de passageiros. Isso parece ser algo menor, mas trata-se do número de exigências a mais que a empresa tem que cumprir para se habilitar. Mais requisitos de segurança significa um custo maior. Não será a primeira nem a última vez que uma empresa desse porte faz economia colocando a vida de terceiros em risco.

Não precisa ir muito longe, basta lembrar da tragédia da Chapecoense, que perdeu todo o time num acidente provocado pela ganância da empresa em voar com pouco combustível e em não fazer uma parada para reabastecimento. Parece mentira que alguém propositalmente põe em risco a vida dos outros para viabilizar o negócio. No caso da Chapecoense, assim como no caso do Boechat, o dono da empresa também era o piloto.

O que difere o caso do Ford Pinto dos nossos casos locais é a ação do governo. Ao punir severamente, ele dá, nos EUA, um recado claro que não faz bem ao negócio correr certos riscos à custa de vidas humanas. A barragem de Brumadinho após a ocorrência de Mariana é a prova cabal de que, por aqui, ainda tratamos morte anunciada como se fosse tragédia.

 

Nuno Figueiredo

Engenheiro Eletrônico formado pela Mauá, MBA em Gestão Empresarial pela FGV, é um dos fundadores da Signa, onde atua desde 95. Entre outros defeitos, jogou rúgbi na faculdade, pratica boxe e torce pelo Palmeiras.

Foto: Getty Images

 

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